Setembro Verde: doar e repartir a vida

José Modenesi

O mês de setembro chega junto com uma campanha transformadora para muitas famílias. O “Setembro Verde”  tem o objetivo de sensibilizar a população e mobilizar a sociedade numa campanha a favor da doação de órgãos. Simbolizando a esperança, o verde colore esse mês. No Brasil, o dia 27 de setembro é o Dia Nacional da Doação de Órgãos e serve para transmitir a importância de entender esse ato como uma decisão crucial para colaborar com a saúde e com a vida do próximo.

Superação

Pauliene e o médico Dr. Vinícius no dia do transplante (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

A auxiliar de Educação Infantil e Alfabetização Pauliene Vieira, hoje com 32 anos, enfrentou, desde criança, complicações nos rins. Quando tinha apenas 12 anos, ela já era medicada com o objetivo de forçar o funcionamento dos órgãos e, a partir dos 20, precisou iniciar a hemodiálise. Ela conta que, durante os 10 anos que fez o tratamento, vivia entre a cidade do interior e a capital do Estado para fazer a hemodiálise. Na época, era a doença que determinava a rotina de Pauliene. “Você para a vida social e profissional porque a rotina é muito difícil”, explica.

Com os desafios desse processo, Pauliene me explica que aguardava pelo transplante, mas nem sempre conseguia estar apta para receber um novo órgão. Na maioria das vezes, as taxas alteradas nos exames impediam a realização do transplante. Neste período de espera, descobriu que estava grávida do filho Lorenzo – algo raro para uma paciente renal e que ela relata com os olhos brilhando. Por conta da gestação, Pauliene precisava fazer hemodiálise todos os dias e os cuidados eram ainda mais intensos.

Há 2 anos, em 2021, quando estava apta novamente e ainda na fila de espera, a realidade de Pauliene mudou completamente. O pai Paulo era compatível, estava saudável para ser o doador e decidiu que iria fazer o transplante. Ela explica que, antes de receber o novo órgão, a rotina era muito desafiadora e abalava os sentimentos dela. “O dia a dia do tratamento é muito cansativo e deixa o psicológico bem abalado”, relembra.

Para Pauliene, a doação de órgãos é extremamente importante – inclusive entre os doadores vivos – e defende que a doação não prejudica o doador, mas muda a vida do receptor.

Comemoração do 1° ano de transplante de Pauliene, ao lado do filho e do marido (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

O meu pai vive tranquilamente e continua saudável como sempre foi. Hoje, eu consigo trabalhar, estudar e viajar por conta da decisão dele

Pauliene Vieira

Pauliene defende ainda que o processo de espera na fila do transplante precisa ser vivido pelo paciente com muito apoio da família, dos amigos e do próprio hospital, pois é um período bastante desafiador. Por fim, ela fala da importância de combater o preconceito das pessoas em relação à doação de órgãos, tanto de pacientes vivos, quanto dos que já não estão entre nós. Pauliene lembra também do quanto a doação mudou a vida dela e finaliza celebrando a nova rotina que hoje ela pôde conquistar por meio da doação.

Esperança

É inegável que muitas vidas se transformam por meio desse ato, como é o caso da Lene Santana. Ela recebeu um rim da irmã, ainda no auge da juventude. Desde que era criança, enfrentava uma rotina de hospital e medicamentos e, por conta dos problemas no funcionamento dos rins, Lene passou por diferentes tratamentos. Ainda assim, as dificuldades do processo eram muitas.

Depois da maioridade, a saúde de Lene ficou mais sensível. Ela precisou iniciar a hemodiálise e entrou na fila para aguardar o momento da doação. Ela lembra que, durante esse período, costumava passar mais tempo internada do que em casa. Nas palavras dela, não tinha vida diante daquela rotina cansativa e desgastante. Aos 24 anos, o quadro de Lene pirou. A espera já estava aflitiva e o dia a dia dela era entre idas e vindas ao hospital. “Quando a situação ficou mais grave, a minha vida parou por conta das complicações”, conta.

Lene e a irmã Néia (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

Nessa época a irmã Néia Santana estava com 19 anos. Ela viu de perto a dificuldade de Lene e se comoveu diante dos desafios que ela enfrentava. Conhecendo a realidade da irmã e com muita vontade de ajudar, Néia decidiu que seria a doadora. A irmã conta que não pensou duas vezes e explica que a escolha foi natural. “A minha decisão de doar foi muito natural. Naquele momento, tudo que eu queria proporcionar uma vida melhor a ela”, relembra Néia .

Lene conta que a rotina foi a maior mudança, porque, apesar de ainda precisar de outros cuidados com a saúde, era possível levar uma vida normal após o transplante. Ainda jovem, depois de receber o novo órgão, ela voltou a estudar e, durante muitos anos, trabalhou normalmente.

Antes do transplante, era muito difícil. Eu ficava isolada por conta da saúde e isso me deixava depressiva. Mas, depois, com um novo órgão, foi melhor. Mudou toda a minha vida para melhor

Lene Santana

Lene passou mais de 20 anos com o órgão doado em perfeito funcionamento. Depois de enfrentar a Covid-19, no final de 2022, o rim recebido começou a ter algumas complicações e a rotina de Lene precisou ser reestruturada. Hoje, aos 47 anos e com apenas 7% do rim funcionando, ela está novamente na fila, aguardando por uma segunda doação, desde novembro do ano passado. Lene explica que ainda não precisou iniciar os cuidados com a hemodiálise, mas esclarece que isso pode acontecer. A rotina voltou a ser desafiadora, mas ela conta que se apoia na fé inabalável para seguir em frente.

Eu paro e penso: Tudo tem um porquê. E a fé fortalece, né? Pra que vou abaixar a cabeça? Eu não compreendo, mas não é da minha conta compreender. Tento levar o mais suave possível e é melhor assim

Lene Santana
Lene Santana: “Doação de órgãos é cuidado e transformação (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

Lene e a irmã Néia deixam a mesma mensagem. As duas acreditam que a doação de órgãos é cuidado e transformação. Néia reforça que a doação pode ser feita ainda em vida e faz questão de afirmar que a saúde dela nunca foi prejudicada por ter doado um rim. Já Lene lembra da importância de doar e explica o quanto isso transforma a vida dos receptores. Lene fala ainda, com propriedade, que os pacientes voltam a viver após o transplante e afirma que receber um novo órgão é receber uma nova vida.

Enquanto espera novamente na fila da doação, Lene se entretém com o que pode. Faz pintura de pano de prato, crochê, cuida das plantas que tem em casa e da galinha – que recentemente teve pintinhos.

Antes de nos despedirmos, Lene mostra o quintal e me fala mais sobre o que consegue fazer atualmente diante dos desafios, mas lembra da dificuldade. “Nos últimos meses, estou muito dependente da minha mãe”, explica. Ela pausa e finaliza: “Por enquanto… por enquanto! Tenho fé que vai mudar de novo”. Eu me despeço desejando sorte e na esperança de que ela vai conseguir o novo órgão.

Altruísmo

Karina Modenese (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

Para a família da Karina Modenese, escolher entre o sim e o não para a doação de órgãos foi uma realidade que se estabeleceu de forma repentina. Em novembro de 2021, quando tinha 23 anos, Karina passou mal enquanto estava na casa do namorado. Ela sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) hemorrágico, causado pelo rompimento de um aneurisma cerebral.

A partir daquele momento, eles enfrentaram o desafio da espera e a notícia mais difícil. O irmão Ricardo, conta que, no terceiro dia de internação, os médicos chamaram a família para uma sala reservada e, ali, ficaram sabendo: Karina não resistiu.

Uma das médicas explicou que o quadro evoluiu para morte encefálica e, com cuidado, diante do momento delicado, perguntou se havia o desejo de iniciar os procedimentos para a doação de órgãos.

Quando a médica perguntou isso, eu olhei para a minha mãe e já falei sim. Ela concordou na mesma hora e meu pai também entendeu a importância

Ricardo Modenese

O irmão conta que a decisão da família de fazer a doação foi um momento comovente para todas as pessoas que estavam acompanhando a saúde da Karina. “Os médicos ficaram emocionados, foi uma comoção na cidade. As pessoas estavam tocadas e algumas choraram, pois foi um ato muito bonito e que é difícil de ver, mas é muito necessário”, relata Ricardo.

Na época, eu, José, autor desse texto, acompanhei tudo de perto e conversando com Ricardo, também lembro da mobilização que ele relata. Ao me falar sobre isso, ele reforça o quanto a doação é um ato nobre porque oferece uma vida nova para pessoas que precisavam muito. A resistência que diversas famílias ainda têm diante dessa decisão, impede que pessoas recomecem a vida por meio da recepção de um novo órgão. Conversar sobre o assunto e desfazer os preconceitos ao redor do tema é um passo importante.

Karina Modenese ao lado da família em julho de 2021. Da direita para a esquerda: a mãe Valeska, o irmão Ricardo, Karina e o pai Renato (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

Ricardo conta que Karina estudava para o ENEM e sonhava em fazer medicina para ajudar o próximo e salvar vidas. No mesmo ano de sua passagem, ela havia feito uma redação sobre o tema da doação de órgãos. Expressou para a família, algumas vezes, o desejo de ser doadora.

Sabendo da importância da doação de órgãos e desse desejo de Karina, no momento mais difícil, foi a isso que a família se apegou. Ricardo conta que a decisão de doar confortou a todos e gerou no coração de cada um a certeza da escolha certa. O processo da doação demora alguns dias e é burocrático, mas foi essa decisão que ajudou a família da Karina a lidar melhor com a situação. O irmão conta que a doação os deixou mais em paz e com a sensação de que ela tinha cumprido o propósito.

Logo quando ela morreu, o que confortou a gente foi ter escolhido pela doação de órgãos. O sonho dela era ser médica para ajudar as pessoas e, de certa forma, o propósito se cumpriu

Ricardo Modenese

Para a mãe Valeska, optar pela doação de órgãos foi, de fato, reconfortante. Apesar do momento difícil, permitir que o desejo de Karina fosse realizado era uma maneira de honrar a memória dela. “Foi como se eu estivesse realizando a última vontade da minha filha e com um propósito maior ainda: de salvar outras vidas”, relata. Valeska fala abertamente sobre o assunto e deseja conscientizar as pessoas acerca da importância da doação de órgãos. Ela encontra no depoimento sobre o que viveu diante da perda da Karina uma maneira de incentivar ainda mais famílias a serem doadoras.

Ricardo lembra do sonho da irmã e explica que, para a família, a doação foi mais do que atender ao desejo dela. Tal atitude foi ainda uma forma de realizar o sonho que Karina cultivava de ajudar o próximo e salvar vidas. O irmão acredita que, por meio da doação, de alguma forma, a Karina ainda vive entre nós.

Antes de finalizar a conversa, Valeska nos propõe uma reflexão. “Não pense na doação de órgãos como uma forma de oferecer uma parte de você para um desconhecido. Na realidade, é um desconhecido que oferece o corpo para que uma parte de você possa continuar vivendo”, esclarece a mãe. “Karina ainda vive”, finaliza.

Apesar da sensibilidade diante do luto, a decisão da família de dizer sim para a doação de órgãos foi o que proporcionou uma nova vida a 5 pessoas que estavam aguardando pelo transplante na fila da doação.

Renascimento

A pequena Isabelly no hospital em Fortaleza (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

A história da mãe Joelma Rodrigues e da filha Isabelly encontrou no sim de uma família a esperança do recomeço. A luta pelo transplante começou quando a menina tinha apenas 3 anos. Na época, Isabelly foi diagnosticada com Miocárdio Fibrose Restritiva por meio de um raio-X. “Naquele dia, começou a nossa luta”, relembra Joelma.

Ainda na cidade de Vitória, as inúmeras consultas começaram a fazer parte da rotina das duas, mas as notícias que recebiam dos médicos do Estado não eram boas. “Eu ouvi uma médica falando que minha filha viveria somente até os 7 anos. É muito difícil ouvir isso”, relata a mãe.

Diante do agravamento do quadro e observando a dificuldade de seguir com os cuidados no Espírito Santo, as duas se mudaram para Fortaleza – por meio do Tratamento Fora do Domicílio (TFD) oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – na busca para renovar a vida de Isabelly. Assim que chegaram ao Ceará, elas foram para uma casa de apoio e os exames no hospital da cidade começaram a ser feitos. O objetivo era buscar um diagnóstico mais preciso e encontrar um tratamento melhor.

Nessa época, Isabelly estava com 8 anos e uma nova análise do quadro de saúde foi feita. Com isso, a medicação da pequena foi, aos poucos, substituída por um novo tratamento e, dessa vez, menos invasivo. Nesse período, os médicos que acompanhavam o caso fizeram a sugestão para que Joelma colocasse a filha na fila do transplante de coração.

A mãe, naquele momento, pensou em todas as dificuldades que passavam diante do diagnóstico complicado da Isabelly e aceitou imediatamente. Ela explica que a rotina da filha era totalmente diferente do dia a dia das crianças da idade dela, mas que acreditava na mudança de vida.

Hoje, aos 16 anos, Isabelly ainda se lembra das restrições. Ela conta que não podia ir à escola e também não podia correr ou brincar, além de passar muito tempo no hospital. “Me sentia isolada porque não podia participar das brincadeiras e fazer bagunça junto com as outras crianças”, relata a adolescente.

Isabelly e a mãe no dia do transplante (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

Joelma conta que o processo de espera foi muito desafiador e angustiante, pois era de uma incerteza muito grande. Apesar disso, ela acreditava que tudo ia ficar bem e que a vida das duas iria mudar. Depois de aguardar por 3 meses, a primeira ligação do hospital. Havia aparecido um doador, mas, infelizmente, o coração não estava saudável o suficiente. De fé inabalável, Joelma continuava esperançando.

Eu recorria ao Senhor porque era muito difícil. A doença abalou todo mundo, mas a fé me dava força para seguir em frente

Joelma Rodrigues

Após três meses na fila, em um sábado à noite, Joelma recebeu a segunda ligação. O coração de Isabelly havia chegado ao hospital e elas estavam mais perto do que nunca do transplante. Naquele momento, dependiam apenas do sim da família do doador.

“Recebi a ligação do hospital dizendo que havia chegado um coração e que era compatível com a Belinha (Isabelly)”, conta Joelma. Ela explica que nunca sentiu nada igual. Quando atendeu ao telefonema do hospital foi uma mistura de medo diante dos riscos da cirurgia, alegria por saber que a vida da filha seria renovada e gratidão pela família doadora.

Eu estava em casa com meu filho mais velho. Tinha acabado de chegar do hospital com a minha filha. Às 8 horas, recebi a notícia de que era para iniciar o jejum, ainda na incerteza. Logo depois, às 11 horas, uma outra ligação do hospital me informava que a família tinha dito sim para a doação de órgãos

Joelma Rodrigues

No domingo de páscoa, Isabelly recebeu um novo coração e, consequentemente, uma nova vida. Joelma conta que, a partir daquele dia, sabia que a filha conheceria um novo mundo e passaria a viver de verdade. A esperança que ela sentiu ao receber a notícia do transplante foi a mesma que levou as duas até Fortaleza, em busca de uma solução para o quadro da Isabelly.

Hoje, aos 16 anos, Isabelly leva uma vida normal (Foto/Reprodução: Arquivo Pessoal)

A recuperação foi desafiadora. Alguns cuidados especiais foram necessários e Isabelly passou cerca de dois meses entre a UTI e o quarto do hospital. Apesar dessas batalhas, o órgão foi muito bem recebido por ela e, aos poucos, a rotina de mãe e filha foi se enchendo de vida.

O processo foi transformador para toda a família, mas de forma especial para Joelma, que acompanhou cada passo de perto, e para a filha que recebeu uma vida nova.

Antes ela tinha várias restrições. Hoje, ela tem vida. É mais feliz, mais concentrada, mais madura. E eu sou uma pessoa muito melhor

Joelma Rodrigues

A mãe relembra ainda de todos os desafios que passaram até o momento da Isabelly receber um novo coração e explica que, no começo, teve muita dor e muita angústia, mas que hoje elas têm uma rotina tranquila e sem grandes preocupações. Depois de tudo que viveram juntas, mãe e filha carregam a mesma mensagem. Elas acreditam na doação de órgãos como um gesto maravilhoso e uma maneira de ajudar as pessoas que mais precisam.

Joelma fala da gratidão que sente pela família que autorizou a doação de órgãos e defende a importância de dizer sim. “Eu sou muito grata à família que disse sim, porque foi esse sim que salvou a vida da minha filha e de outras crianças também”, afirma.

Joelma reforça o poder transformador da doação de órgãos e fala que conversar sobre o assunto é muito importante para adquirir consciência e combater a resistência que muitas pessoas ainda têm diante da doação.

Hoje, eu e toda a minha família somos doadores, pois a gente entende a importância desse sim. Foi o sim que salvou a minha filha e que pode salvar muitas outras vidas

Joelma Rodrigues

OPINIÃOO relato de cada uma das pessoas ouvidas por mim, autor desse conteúdo jornalístico, é um testemunho embebido de esperança, força e determinação que se conecta em uma só palavra: transformação. Ao escutar as histórias, compreendi que a doação de órgãos muda, para sempre, a vida de todos os envolvidos nesse processo. É o amor entre familiares que oferece a vida nova, é a coragem de realizar o último desejo de uma pessoa querida ou o recomeço depois do sim de uma família enlutada. A verdade é que essa reportagem carrega em si muitas histórias para além dos relatos aqui contidos. Concluo, portanto, que a transformação é coletiva. Essas 4 histórias, agora, eternizadas em texto, ecoam a importância de dizer SIM para a doação de órgãos e mostram que existe esperança e conforto em meio à adversidade.

Edição: José Modenesi

Imagem de Destaque: Fernanda Sant’Anna/Lacos