LGBTQIAP+: letras invisíveis

LGBTQIAP+: letras invisíveis

Caminho a ser percorrido pela comunidade LGBTQIAP+ para buscar espaços na sociedade (Imagem: Yago Oliveira)

José Modenesi e Thalita Gomes

Na sociedade, as pessoas LGBTQIAP+ vivenciam, cotidianamente, situações de preconceito e de violência que, muitas vezes, se estabelecem de forma mais recorrente por conta da ausência do debate sobre a existência e sobre a luta dessas pessoas. Essa violência cruel se apoia numa narrativa teórica infundada de que as pessoas LGBTQIAP+ são menos humanas e menos dignas da vida do que pessoas que não pertencem a esse grupo.

Tal narrativa de subumanidade, infunde a ideia de que essas pessoas não devem ocupar o espaço midiático – ou qualquer outro espaço que permita a visibilidade desse grupo – e nem devem reivindicar direitos básicos e de reparação histórica. Apesar disso, a comunidade LGBTQIAP+ resiste. Essa é uma história que começa, oficialmente, lá em 1969.

O mês de junho se torna o mês do orgulho a partir da Rebelião de Stonewall Inn que aconteceu em Nova Iorque em 28 de junho de 1969. Naquele dia, a polícia da cidade tinha um mandato para inspecionar o bar Stonewall Inn e o abuso de poder de um policial contra uma pessoa da comunidade foi suficiente para iniciar a rebelião.

Confira alguns registros da Rebelião de Stonewall Inn

Na ocasião, a pessoa pediu o apoio do grupo que estava próximo ainda enquanto sofria a violência. Com a reação imediata e a rebelião das pessoas LGBTQIAP+ iniciada, os policiais precisaram se esconder dentro do bar e as manifestações pela cidade perduraram por mais 5 dias, mobilizando milhares de pessoas.

Apesar da comunidade LGBTQIAP+ ser sinônimo de resistência, de diversidade e a pluralidade da sigla ser evidente, a sub-representação dessas pessoas ainda persiste e resulta na invisibilidade desse grupo.

Jornalista e especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) Marina Dayrell acredita que a comunicação ocupa a função central na vida de toda a população e que, por esse motivo, deve abarcar todos os grupos que integram a sociedade.

A jornalista e especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) Marina Dayrell (Foto: Virgílio Amaral/Arquivo pessoal)

A comunicação é um registro vivo de tudo o que acontece no mundo e precisa ser formada e produzida por quem faz parte da história

– Marina Dayrell

Ao voltar o assunto à visibilidade da comunidade LGBTQIAP+, Marina logo traz à tona a realidade de que os dados relacionados a esse grupo são levantados por associações independentes ou por empresas privadas e expõe ainda que o Censo Demográfico brasileiro não coleta informações sobre a comunidade. Para ela, a invisibilidade dessas pessoas começa aí.

Enquanto jornalista, Marina fala também da falta de visibilidade na mídia, que acaba escondendo a vivência e a existência das pessoas da comunidade e explica que é justamente essa invisibilidade que colabora com a falta de conhecimento que a população tem sobre a realidade das pessoas LGBTQIAP+, defendendo que isso se relaciona com o atraso dos avanços legislativos para esse grupo.

A população deixa de conhecer os desafios e os obstáculos da comunidade e isso diminui a pressão social pela equidade de direitos

– Marina Dayrell

Marina explica também que o retrato das redações no Brasil está preso à figura do homem cisgênero, branco e heterossexual. Para ela, essa realidade ajuda a perpetuar o preconceito, ainda que velado. A jornalista pontua também que a falta de conhecimento é mais um fator que interfere na invisibilidade, pois gera nas equipes dos veículos midiáticos a sensação de que as pessoas LGBTQIAP+ não são importantes.

Mesmo assim, Marina avalia que é possível mudar esse cenário justamente por meio da ocupação da comunidade nos espaços de produção dos conteúdos para a mídia. Ela defende que o jornalismo precisa deixar de emplacar o discurso de “dar a voz” para começar a abraçar a ideia de “ser a voz”, ou seja, a comunidade precisa estar trabalhando nesses espaços para que a realidade possa ser reconstruída e para que esse grupo deixe o lugar da invisibilidade.

Ativismo

O presidente do Conselho Estadual LGBTI+ e psicólogo João Lucas Cortês fala sobre a importância da visibilidade para a comunidade e lembra que lutar contra a invisibilidade colabora com a possibilidade de construir uma nova realidade para esse grupo.

João Lucas Côrtes em uma das ações enquanto presidente do Conselho Estadual LGBTI+ (Foto: Arquivo Pessoal)

Ocupar espaços na mídia é um processo importante que pode colaborar com mudança das representações sociais

– João Lucas Cortês

João ainda defende que a diversidade de pessoas em todos os âmbitos da sociedade é indispensável para que as normalidades compulsórias deixem de ser disseminadas – ou seja, quanto mais a diversidade puder existir livremente, mais pessoas se sentirão à vontade para viver a própria diversidade.

Segundo João, a dificuldade para a comunidade estar na agenda da mídia fora do mês do orgulho é muito grande. Apesar disso, ele explica que o Conselho Estadual LGBTI+ promove a cidadania e o combate à lgbtfobia para além dessas datas, justamente para ir na contramão do sistema. “Ser agenda fora do mês do orgulho é complexo, mas as ações do coletivo acontecem todos os dias e podem ser pautadas”, finaliza o presidente do Conselho.

Parte da agenda da comunidade LGBTQIAP+ é manter a sigla atualizada e de acordo com os valores e objetivos desse grupo. Ao longo dos anos, muitas mudanças aconteceram na sigla que representa essas pessoas para que diferentes sexualidades e identidades de gênero fossem incluídas.

Veja abaixo a linha do tempo da sigla LGBTQIAP+

Imagem: Thalita Gomes

Vale destacar que cada uma das letras representa uma sexualidade ou identidade de gênero que abrange determinado grupo dessa comunidade. Hoje, composta por 8 letras, a sigla LGBTQIAP+ representa, respectivamente: lésbicas; gays; bissexuais; travestis, transexuais e transgêneros; queers; intersexuais; assexuais e pansexuais. Por fim, o sinal de mais (+) representa outras formas de expressão, para além das representadas na sigla.

A graduanda em Publicidade e Propaganda Thaila Alexandra atualmente integra o Movimento Negro Unificado e o Levante Popular da Juventude. Ela logo expõe sobre o aproveitamento das marcas durante o mês de junho e traz à tona a discussão ao redor do ‘pink money’. Essa expressão vem do inglês e relaciona o poder de compra das pessoas LGBTQIAP+ com o capitalismo que se aproveita da comunidade para vender os produtos sob um discurso de respeito e de aceitação que é reverberado apenas nessas datas.

A graduanda em Publicidade e Propaganda Thaila Alexandra (Foto: Arquivo Pessoal)

Thaila lembra que, durante o mês do orgulho, inúmeras marcas abusam desse poder de compra para emplacar uma imagem de apoio à comunidade enquanto ignoram a existência desse mesmo grupo durante os outros meses do ano.

Para graduanda em publicidade, essa postura das marcas revela o preconceito e o oportunismo dessas organizações, principalmente ao observar que as empresas não valorizam e nem humanizam os profissionais da comunidade LGBTQIAP+ para além das datas que representam a luta dessas pessoas. Thaila afirma também que essa comunidade precisa de apoio e de visibilidade durante todo o ano e que somente um único mês não é suficiente para gerar renda e para mudar a realidade das pessoas LGBTQIAP+.

Ao lembrar de quando era adolescente, Thaila reflete o quanto essa visibilidade teria colaborado com a experiência pessoal dela enquanto uma mulher bissexual. Ela sente que isso teria a oferecido uma realidade com mais liberdade sexual e emocional. A futura publicitária acredita que entender a existência de pessoas LGBTQIAP+ teria facilitado na escolha de ocupar os espaços de luta e de resistência que ela ocupa hoje.

Legislação

A advogada e mestra em direitos e garantias fundamentais Renata Bravo relata que quando a sociedade invisibiliza a comunidade LGBTQIAP+, o exercício da cidadania desse grupo é tomado. Ela explica que o apagamento é uma maneira de negar a existência e a cidadania e, consequentemente, de atrasar o avanço de políticas públicas para essas pessoas.

A advogada e mestra em direitos e garantias fundamentais Renata Bravo (Foto: Arquivo Pessoal)

Para que as políticas públicas sejam feitas, a sociedade precisa reconhecer, nomear, debater e garantir os direitos

– Renata Bravo

Renata acredita que há algumas possibilidades de promover a visibilidade LGBTQIAP+ por meio do direito. Ela relata que o direito pode e deve reafirmar o que está escrito na legislação e na Constituição brasileira, para, assim, ajudar a garantir os direitos da comunidade.

Além disso, a advogada fala da importância da própria legislação enquanto motor de promoção da visibilidade desse grupo. Para ela, quando o direito reconhece as dificuldades da comunidade ao acessar serviços básicos e quando promove políticas públicas que colaboram com a cidadania das pessoas LGBTQIAP+, a sociedade entende que esse grupo é visto e reconhecido enquanto parte do projeto daquele país.

Renata finaliza dizendo que, apesar da lei não evitar completamente os casos de violência, não deixa de ser um dos mecanismos de efetivação da garantia de políticas públicas, além de ser também uma forma de impedir o apagamento total da vivência e da realidade das pessoas LGBTQIAP+.

O Estado precisa dizer que essas pessoas têm direitos e que eles serão garantidos a elas

– Renata Bravo

Luta

A Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (GOLD) é uma Organização Não Governamental (ONG) que promove no estado do Espírito Santo um movimento diário e árduo que busca conquistar espaço na sociedade para as pessoas LGBTQIAP+ que sofrem diante da marginalização, da violência e da invisibilidade.

O trabalho da GOLD inclui a vigilância sobre as políticas públicas promovidas no Espírito Santo por meio da representação da ONG no Conselho de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CELGBT/ES) e, ainda, no Conselho Municipal de Direitos Humanos de Vitória.

A GOLD atua desde o ano de 2005 na luta pela inclusão social, pelo respeito às diferenças e pelo cumprimento dos Direitos Humanos. Além disso, a Associação promove, ainda, saúde, educação, assistência social à parcela da comunidade LGBTQIAP+ que precisa do apoio da ONG e eventos variados. É a partir de cada projeto desenvolvido pela GOLD que a visibilidade, aos poucos, é conquistada.

Atualmente, a Associação conta com a colaboração do Presidente Diego Herzog, da Diretora Maria José dos Santos e ainda da coordenadora de ações e projetos Deborah Sabara. São essas três pessoas, ao lado de um time repleto de diversidade e desejo de lutar, que ocupam espaços e abrem os caminhos para a comunidade LGBTQIAP+ no Espírito Santo.

A coordenadora de ações e projetos Deborah Sabara acredita que o ativismo lgbt, um passo de cada vez, faz uma mudança expressiva nos espaços midiáticos nos últimos anos. Por outro lado, Deborah demonstra a preocupação que sente diante de pessoas que querem utilizar a pauta da comunidade LGBTQIAP+ apenas para gerar cliques e curtidas.

O coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades do ES (IBRATES) Carlos Eduardo de Melo, carinhosamente chamado de Cadu, considera a invisibilidade uma forma de violência contra a comunidade LGBTQIAP+. Ele defende que a falta de visibilidade é planejada pelo sistema, que tem o apagamento dessa comunidade como parte do projeto de atraso de políticas públicas para esse grupo.

O coordenador do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades do ES (IBRATES) Cadu de Melo (Foto: Arquivo Pessoal)

Para Carlos Eduardo, grupos como o Instituto do qual ele coordena são indispensáveis para representar essa população nos espaços públicos e privados, levando o conhecimento e o aprendizado sobre a comunidade para todos os âmbitos da sociedade.

Cadu de Melo é um pessoa não binária trans masculina e fala do quanto teria sido importante para a própria vivência enquanto lgbt ter se observado na realidade do outro para ter uma infância e uma juventude mais saudáveis.

Eu não teria me sentido excluíde e nem sentiria culpa. Não me olharia como erro, falha ou com nojo de mim mesmo

– Cadu de Melo
A psicóloga Lilian Coelho é especialista no atendimento psicológico para pessoas LGBTQIAP+ (Foto: Arquivo Pessoal)

A psicóloga Lilian Coelho é especialista no atendimento psicológico para pessoas LGBTQIAP+ e expõe que a invisibilidade desse grupo dialoga diretamente com a indiferença com que o mundo trata essas pessoas, as colocando à margem da sociedade. Lilian explica que esse processo de sub-representação afeta o desenvolvimento psicossocial do indivíduo e exige um esforço maior da comunidade para ocupar os mais variados âmbitos. Além disso, ela complementa explicando que, quando acessados, esses espaços costumam ser limitados, inferiores e, ainda, não protegem a pessoa do preconceito.

Quando a comunidade LGBTQIAP+ não desfruta da possibilidade de se enxergar na vivência do outro, a sensação de não pertencimento passa a ser recorrente. A psicóloga elucida que essa situação de invisibilidade pode gerar danos à saúde mental, o que prejudica todas as áreas da vida de uma pessoa.

Relações sociais de qualidade é uma das coisas mais importantes para o equilíbrio mental do indivíduo

– Lilian Coelho

A ocupação das pessoas LGBTQIAP+ na mídia, para a psicóloga, é indispensável porque promove a saúde mental. Lilian explica que é justamente por meio desse espaço que será possível que essas pessoas se reconheçam enquanto parte de uma comunidade. Ela fala ainda da importância da visibilidade para que as crianças entendam outras possibilidades para além da norma cis hétero. “Às vezes, aquela criança que já sente passa a ter para onde olhar e entende que existem pessoas como ela”, explica Lilian.

Para uma grande parte da comunidade, é comum “se manter no armário” até a fase adulta. Ser impedida de viver a sexualidade ou a identidade de gênero por conta do preconceito faz parte da realidade de muitas pessoas LGBTQIAP+ e essa repressão gera uma situação de sofrimento. Por isso, Lilian defende que permitir que a visibilidade aconteça fortalece esse grupo.

A comunidade é tão reprimida que muitos chegam na vida adulta ainda completamente escondidos e é a visibilidade que dá força para seguir em frente

– Lilian Coelho

A lgbtfobia, então, faz parte do projeto da invisibilidade que atinge a comunidade LGBTQIAP+. Para a psicóloga existe uma recusa dos lgbtfóbicos em compreender a profundidade das questões da comunidade. Lilian explica que a justificativa para afastar essas pessoas dos espaços na mídia se embasa na religião e, também, em uma teoria infundada de que as pessoas LGBTQIAP+ querem desestruturar a sociedade e destruir a família.

Ao falar disso, a psicóloga reforça que nenhuma pessoa pode ser influenciada a ‘se tornar’ lgbt. Ela afirma que isso faz parte do alarde social em relação à comunidade uma vez que não é possível exercer essa influência sobre um indivíduo. Além disso, Lilian finaliza defendendo que, ainda que a influência acontecesse, não deveria ser um problema, visto que fazer parte da comunidade LGBTQIAP+ não é algo que precisa ser combatido.

A invisibilidade da comunidade LGBTQIAP+ também está na ausência desse grupo protagonizando a própria história. Por esse motivo, todas as pessoas ouvidas nessa reportagem e a equipe dessa produção integram a comunidade LGBTQIAP+.


Edição: José Modenesi

Imagem do Destaque: Yago Oliveira