Opinião: Uma linha do preconceito

Ana Clara Gonçalves

O designer alemão Karl Lagerfeld (Foto: Divulgação/Vogue)

Karl Lagerfeld é um homem reconhecido pelo trabalho desenvolvido nas maiores casas de moda do mundo e por sua figura icônica de cabelos brancos, sempre armados num rabo de cavalo, óculos escuros e luvas pretas. O designer, falecido em 2019, segue sendo um dos mais respeitados no meio fashion e, por isso, foi o nome escolhido para uma homenagem póstuma no Met Gala. Não se nega a grande responsabilidade de Karl em moldar a indústria, lançar tendências e inovações, mas até que ponto a notável história alivia as falas polêmicas e incoerentes ditas pelo alemão?

O evento anual de arrecadação de fundos para o Metropolitan Musuem of Art’s Costume Institute, Met Gala, como de costume vai acontecer na primeira segunda-feira de maio em Nova York e consiste num desfile aberto em tapete vermelho regido por um tema. Dentro do museu, há uma exposição de moda temática que serve como direção criativa para as roupas usadas no tapete vermelho, incentivando estilistas e pessoas notáveis a fazerem inovações e homenagens. Tudo transmitido por uma imensa cobertura da prestigiada revista Vogue, uma das principais patrocinadoras do evento.

Diretor criativo da Chanel por mais de 30 anos e conhecido por espalhar o famoso logo “CC” entrelaçado, Lagerfeld também ficou conhecido nos anos de trabalho por espalhar intensas falas misógenas sobre os corpos das mulheres e os comportamentos delas. Historicamente, a indústria da moda enaltece corpos magros e brancos, valorizando distúrbios de imagem e de alimentação para tentar sustentar uma visão irreal de feminilidade e magreza.

A persona cultivada pelo estilista ultrapassou os limites de “proteção” da indústria e se tornou também marcante para a cultura pop, abrindo espaço para que uma audiência muito maior do que a inicial concordasse e apreciasse os comentários prejudiciais e arcaicas, como: “ninguém quer ver mulheres curvilíneas na passarela” e sobre a cantora Adele: “ela é um pouco gorda demais”. Mesmo que defenda o uso dessas frases como rebeldia e senso de humor, os comentários sobre corpos alheios são apenas cruéis e repetitivos. 

Naturalmente, após a morte de Karl, houve uma grande celebração ao trabalho que foi desenvolvido por ele, junto de uma grande manifestação de amor pelo alemão. Isso me dá a impressão de que há uma fase em que a pessoa conquista tanto reconhecimento, dinheiro e fama, que não importa se faz comentários antissemitas, racistas, gordofóbicos ou islamofóbicos, a sociedade sempre vai tentar equilibrar isso destacando as boas ações que você teve.

A editora da Vogue Americana Anna Wintour e o designer Karl Lagerfeld (Foto: Courtesy Getty)

Embora não concordasse com atitudes de Lagerfeld, Anna Wintour – atual editora-chefe da edição norte-americana da revista Vogue – já o homenageou algumas vezes e decidiu junto à equipe de curadores que o Met Gala de 2023 seria uma boa oportunidade para homenageá-lo novamente. Contudo não podemos esquecer que a morte não apaga as más condutas realizadas em vida.

Reconheço e admiro a importância do trabalho de Karl, mas por mais icônico que seja um trabalho, ele para sempre vai estar manchado pela discriminação. E por isso, não há motivos na atualidade para que o tema do maior evento de moda do mundo seja em homenagem a essa figura. Racismo e sexismo não são falhas de caráter, são maus enraizados que sustentam a sociedade e a morte não pode ser uma escapatória para quem é conveniente com tais.

Lagerfeld disse e defendeu seus atos e palavras até a morte, dando a sensação de que a cultura do cancelamento atual tem memória curta ou que não é forte o suficiente para combater o capitalismo e a gana por produtos de luxo, se consolidando um ciclo feio para alguém com capacidade para um trabalho tão bonito.

Se a indústria se recusa a enxergar os graves atos que aconteceram, mesmo com as cortinas abertas, corremos o risco de que atos assim se tornem rotineiros com a desculpa de que estão vindo de gênios criativos e incompreendidos. Nos últimos anos, a aceitação pessoal, o body positive, o feminismo e diversos outros movimentos estão conquistando espaço e lutando contra tantas violências naturalizadas na moda. Ver alguém com falas como Karl Lagerfeld enaltecido, machuca e preocupa. Avanços significativos à aceitação de pessoas de diferentes tamanhos, raças, idades e habilidades faz parte de um movimento liderado por pessoas como Becca McCharen e Gabriella Karefa-Johnson.

Mas como Virgil Abloh, grande impulsionador do movimento de inclusão na moda e defensor da juventude, dizia: “a juventude sempre irá vencer. Apesar de o caminho ainda ser longo”.

>>> Esse texto faz parte de uma série de conteúdos elaborados pelos estudantes do 5º período de Jornalismo da FAESA Centro Universitário durante as aulas da disciplina de Jornalismo Opinativo. Os conteúdos tiveram a orientação do professor Fabiano Mazzini.

Imagem do Destaque: Divulgação/Met Gala