União do destino
Karen Benício e Matheus Metzker
Um sentimento de gratidão perpetuado entre doador e receptor surge em um processo de transplante. O doador por fazer o bem por vontade própria ou mesmo por um ato da família. E o receptor por ter a vida e a saúde de volta. Independente de motivos, uma situação que sempre pode gerar dúvidas ao se falar da doação é a de conhecer a pessoa que doou o órgão e os parentes ou mesmo saber quem foi aquele que foi salvo por um ato nobre.
Nessa última reportagem da série especial sobre Doação de Órgãos, conheça histórias de pessoas que quiseram conhecer o doador ou receptor de um órgão como forma de agradecimento e amor pelo ato. Vale a pena conferir também as cinco matérias com temáticas diferenciadas que fizeram parte de toda a série especial: “Demora e sofrimento: o órgão que não veio”; “Nova chance: a satisfação de receber um transplante”; “Luta pela vida”; “Empatia e Dedicação”; e “Doação em vida“.
Os médicos e as instituições hospitalares, em geral, defendem que a prática de conhecer o doador ou o receptor deve ser evitada, conferindo confidencialidade às informações sobre o transplante. Esse comum acordo entre os profissionais acontece porque os mesmos seguem a Portaria de Consolidação n° 4, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, em que diz que os doadores e receptores possuem a identidade mantida em sigilo.
As motivações para tratar a doação como sigilosa são inúmeras. Perpassam desde o campo emocional, passando pelo financeiro e até psicológico. Isso porque em caso de doação por morte encefálica, a família do doador pode buscar no transplantado um vínculo afetivo extremo por acreditarem que há um prolongamento da vida do ente querido, enquanto o receptor pode adquirir sentimento de culpa pela morte.
Além disso, pode se criar uma dependência baseada em dinheiro e bens no transplantado. Ele pode acreditar que é uma obrigação ajudar à família do doador e até gerar confusões de identidade. A família doadora pode não diferenciar o ente querido com o receptor, ou seja, acreditar que é a mesma pessoa.
Apesar disso, há histórias que provam exatamente o contrário. Amor, carinho e respeito são apenas os pilares de troca entre doadores e receptores que optaram em conhecer um ao outro. Isso tudo pela curiosidade juntamente com a vontade de um abraço caloroso como forma de agradecimento, alívio ou transmissão de paz e positividade para aquele indivíduo que fez parte de um processo marcante de sua trajetória.
Fazer o bem mesmo na dor
O luto é uma das fases mais difíceis enfrentadas pelo ser humano. Ao passar por esse momento, ter empatia e pensar em fazer o bem são situações vistas como raras e incomuns na sociedade. A diarista Lucinéia Conceição, 40 anos, é um exemplo de quem conseguiu ver na dor uma alternativa para trazer sorrisos, renovar a esperança e salvar a vida de outras pessoas.
Um jovem querido, tranquilo e que não tinha envolvimento com nada de errado. Dessa forma singela, Lucinéia define o filho João Victor de Oliveira. O estudante hoje vive apenas nas memórias da diarista que no ombro imortalizou uma homenagem “filho, enquanto eu respirar, vou te amar”, da família e também dos amigos que conquistou durante a trajetória tão curta e que foi interrompida aos 17 anos.
Era final de 2017, especificamente 28 de dezembro, quando de volta à casa com dois amigos, João foi acertado por um tiro feito por suspeitos em uma moto.
Até hoje não sabemos o porquê. Morávamos em uma rua muito agitada por causa do tráfico de drogas. Mas, não tinha motivo para ser nele. Ele nem tinha envolvimento com nada
Lucinéia Conceição
A morte do filho veio três dias mais tarde no hospital por morte encefálica, que é quando o cérebro humano não executa mais nenhum tipo de atividade vital. Mesmo naquele momento e sem nenhum profissional da saúde ainda comunicar do procedimento, se aceitaria doar os órgãos de João, Lucinéia mostrou uma força que ela nem sabia que tinha. “Tive o pensamento de que interromperam o sorriso do João aqui na Terra, mas que ele faria ainda muita gente sorrir”, lembra com emoção Lucinéia, que tem outras duas filhas.
Todos os órgãos do João foram doados. Contudo, a doação do rim que guarda mais uma história emocionante na vida de Lucinéia. No dia do enterro do João, na virada do ano, ela recebeu uma ligação de uma parente que estava dentro de um hospital que haveria um transplante de rim naquele momento e, pelos indícios e características do doador, era o órgão do João. Um fato que fez surgir a vontade de conhecer quem teve a vida salva pelo filho e também pela própria decisão da diarista.
Por respeito à decisão da receptora e a família dela, Lucinéia se mostrou disposta a esperar o tempo que fosse para o encontro, que aconteceu quase um ano após a morte do filho.
A estudante Margarida Siqueira, 19, recebeu o rim do João e passou por muitas superações. A partir de uma dor nas costas, fez uma ultrassonografia em 2017 e descobriu que o rim esquerdo estava bem maior que o direito. Isso fez com que começasse a hemodiálise e passasse por processos de saúde cansativos.
Nessa intensa superação, uma promessa veio depois de seis meses, precisamente no dia 27 de dezembro, para São Benedito e São Sebastião, dois santos sempre lembrados pela família do congo da estudante. Poucos dias depois, uma ligação realizou aquele que era o grande desejo pedido pela Margarida: o órgão que tanto esperava.
Hoje, Margarida tem uma nova vida e por imensa gratidão tem contato frequente com a Lucinéia, sendo que gosta muito da presença dela na vida. Além disso, por ser moradora de Iúna, sempre que está fazendo exames de rotina em Vila Velha faz uma visita a mãe do João.
A Néia é como se uma fosse uma segunda mãe para mim. Foi emocionante nosso encontro porque ela me viu como se eu fosse um pouco do filho dela. O netinho dela chegou a me perguntar se eu seria agora a tia dele. Eu falei que sim. E que não em forma de homem, mas de mulher. Gosto muito de ter ela e a família por perto
Margarida Siqueira
Um encontro esperado
A publicitária Flávia de Miranda, 28, é doadora de sangue há muito tempo. Um dia em direção a mais uma doação no Hemoes descobriu que não poderia dessa vez doar pelo uso de uma medicação. Fato que gerou uma feliz coincidência e, por isso, um ato nobre que mudaria a vida de uma jovem, mesmo tão longe do Espírito Santo.
Flávia, a partir desse dia em 2015, se cadastrou com a indicação de um próprio segurança do centro de doação de sangue para o banco de medula óssea, uma das vertentes de doação de órgãos.
Em 2016, recebi a primeira ligação. Fui compatível com alguém do Pará. Após cinco meses, houve a realização do procedimento. Fiz isso porque eu gosto de ajudar o próximo. Ajudando as pessoas, isso é retribuído em muito mais. Como eu não tinha feito nenhum tipo de cirurgia, fiquei com receio, mas em nenhum momento pensei em desistir
Flávia de Miranda
O encontro com a Luana Vitória de Oliveira de 14 anos aconteceu em abril desse ano. O encontro foi motivado pela curiosidade tanto da adolescente e da família dela, como de Flávia. “Para mim foi tão pouco que fiz. Um ato tão simples meu que foi muito para ela. Quis muito conhecê-la pela curiosidade em saber em que pude ajudar. Fui para lá e todos nós ficamos muito felizes desse encontro acontecer”, diz a publicitária que estava em contato direto com a família da Luana.
Luana é de Tucuruí, cidade pequena do Estado do Pará, onde mora com a família. Ela foi diagnosticada com leucemia desde os 3 anos de idade. Após três anos de tratamento, se curou naquele momento por completo. Mas, em 2015, sintomas voltaram e trouxeram de volta o sofrimento de enfrentar esse tipo de câncer. Sofrimento que só cessou com a ligação de uma doação compatível aqui no território capixaba. A medula mudaria a vida da jovem e traria de novo a esperança.
A auxiliar administrativo Lauriane de Oliveira, 42, conta que como mãe isso foi uma realização, já que os pais querem sempre o melhor para os filhos. Por isso, carrega uma gratidão eterna com a Flávia. “No primeiro momento assim que a assistente social entrou em contato comigo e me passou o número da doadora, liguei na mesma hora. Chorava muito. Eu não conseguia falar. Não tenho palavras para agradecer o que ela fez pela minha filha. Digo que ela foi um anjo enviado por Deus”, afirma emocionada.
Luana e a família conheceram há pouco tempo a capital capixaba, lugar que é lar da pessoa que trouxe apenas positividade e um sentido reconfigurado para o viver da jovem paraense.
Foto do Destaque: Flávia Miranda e Luana Vitória/Arquivo Pessoal
Edição: Matheus Metzker