As novas faces da escravidão no Brasil
O trabalho escravo e seus legados fazem parte do sistema capitalista atual, desde o trabalho forçado até a jornada 6×1. Sem mobilização popular, a exploração permanece intacta

Guilherme Trindade e Luiz Felipe Rocha
O trabalho escravo é uma prática do capitalismo contemporâneo. Segundo dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para 2024, 1.035 ações de combate ao trabalho análogo à escravidão foram realizadas, resultando em 2.004 trabalhadores libertados. Desde o reconhecimento oficial desse crime, em 1995, o Brasil teve mais de 65 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão libertos.
O trabalho análogo à escravidão está contido no Artigo 149 do Código Penal, classificando a vítima como aquela que é submetida a trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes ou que tem sua locomoção restringida em razão de dívida contraída com o empregador. A presença de qualquer um dos quatro elementos já caracteriza o crime de exploração de trabalho escravo.
Os estudos da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) revelam o perfil principal das vítimas: 94% são homens e 76% são trabalhadores do setor agropecuário. Os dados mostram, também, que 66% dos escravizados são negros. O Programa Seguro-Desemprego, com dados registrados entre 2003 e 2023, afirma que, entre os trabalhadores libertados, mais de 60% são analfabetos ou têm escolaridade inferior ao 5° ano do Ensino Fundamental.
O historiador Antonio Alves afirma que a desigualdade social é um dos fatores agravantes do trabalho escravo contemporâneo. Antonio vê, também, uma modernização dos “senhores da casa grande”, mas a mentalidade ainda continua presente, vendo o outro, que é diferente deles — seja o negro, indígena, mulher negra, pessoa empobrecida — como um objeto e não como um ser humano igual.
Antonio Alves diz, ainda, que, normalmente, o escravizado é um migrante interno ou imigrante e que, por não conhecer a região ou a língua local, fica muito vulnerável ao empregador. Ele conta a situação de uma mulher venezuelana que, iludida por empregos no Brasil, foi escravizada e estuprada: “Ela conseguiu fugir e denunciar, aí os escravagistas metralharam a casa dela lá na Venezuela. Ainda bem que a família já tinha se mudado”, relata.
O historiador afirma que a escravidão é inerente ao capitalismo, não sendo formada só de casos isolados. Antonio argumenta que a escravidão, por ser estrutural do sistema, é praticada no mundo inteiro, do Brasil até a Europa. Ele relata, ainda, que, no capitalismo, a tecnologia de ponta convive com a exploração: “Na Amazônia, o trabalhador explorado bebe a mesma água e dorme no mesmo curral do gado que tem inseminação artificial”, exemplifica.
Antonio clama por uma mobilização popular no combate ao trabalho escravo, tanto por parte das instituições, ONGs e governantes, quanto pelos cidadãos. O historiador pede maior atenção e pesquisa na compra de mercadorias — tanto roupas quanto móveis — para não alimentar a cadeia produtiva da exploração escrava. Ele diz, ainda, que, sem essa mobilização, a escravidão não terá fim e que cada um tem que fazer sua parte.
Legados da escravidão
O historiador acredita que a jornada 6×1 é um legado do trabalho escravo no país. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), de 2023, apontam que 33 milhões de brasileiros trabalham de 41 a 44 horas semanais — o que pode incluir quem está na jornada 6×1. Segundo pesquisa do “Atlas 6×1”, 70% dos trabalhadores dessa escala apresentam estresse por conta do trabalho, além de 30% apresentarem sinais de burnout.
Maria Eduarda Ávila, que concilia a faculdade de Jornalismo com o trabalho de atendente em uma gelateria no modelo 6×1, relata ter uma rotina exaustiva, sem tempo de viver. A folga de Maria é fixa na segunda, trabalhando em feriados e fins de semana até 00h30. Ela afirma, ainda, que 1 dia não é suficiente para descansar e que perde muitos momentos especiais: “Já perdi aniversários do meu irmão e da minha mãe, perco momentos que não vão voltar mais. A escala te tira o direito de viver”, conta.
Antonio Alves argumenta que esses trabalhadores não têm uma vida digna: eles vivem para trabalhar e não o contrário. Ele diz, ainda, que o capitalismo naturaliza o que não é natural e que é preciso lutar pelo fim da escala e das condições subumanas: “O trabalhador vive em transporte público sendo transportado igual aos navios negreiros, cansado, suado, para chegar ao trabalho e voltar”, afirma.
Outro legado da escravidão apontado pelo historiador é a “uberização” — modelo de trabalho mediado por aplicativos como Uber e iFood. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2024, apontam que 1,7 milhão de pessoas atuam nessa modalidade e 71% não têm registro formal. A pesquisa mostra, também, que, apesar de os trabalhadores de aplicativo ganharem 4% a mais que os não plataformizados, eles trabalham 6 horas semanais a mais e ganham R$ 1,40 a menos por hora.
Luis Felipe, 21 anos, entregador de iFood e Uber e estudante de Psicologia, afirma que quanto mais o trabalhador aceita ser escravizado pelos aplicativos, maior é o ganho financeiro. Ele conta que, por conta da rotina exaustiva, dividida entre trabalho e estudos, sente diversos impactos na saúde mental. Mesmo considerando que a liberdade prometida pelo regime CLT seja apenas uma sensação ilusória, avalia que ainda assim é uma alternativa melhor do que estar desempregado.
Trabalhadoras domésticas
O trabalho doméstico é uma atividade marcada por longas jornadas e baixa remuneração, além da proteção limitada oferecida aos trabalhadores. A rotina de desgaste físico e mental afeta as mulheres que atuam nas casas de família. A precarização se torna parte do cotidiano e mostra uma nova forma de exploração que se mantém mesmo na atualidade. Em relação ao trabalho doméstico, desde 2017, há registros de escravizadas no país. No total, 125 trabalhadoras foram escravizadas.
Shirley Andrade, pós-doutora em sociologia, afirma que a análise estrutural da trabalhadora doméstica é totalmente inviabilizada. A socióloga conta que, por conta da importância financeira e social da profissão, possíveis greves parariam o país, por isso a inviabilização da causa. Ela descreve o desafio na fiscalização de possíveis explorações, dificultada pela “PEC das domésticas”, no qual o patrão tem que ser avisado do exame, sendo possível modificar o ambiente de trabalho.
“A cidadania delas é completamente roubada, é construído no imaginário delas que elas são inferiores e esse é o lugar delas”, relata Shirley. A socióloga acredita que o saber milenar das trabalhadoras domésticas não é valorizado, sendo roubadas de sabedoria, conhecimento e até do afeto familiar, pois muitas têm que cuidar da família do patrão em detrimento da própria. Shirley diz que essas trabalhadoras, por conta da precarização do serviço, se veem obrigadas a aceitarem essas condições.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) do último trimestre de 2022, 84% das trabalhadoras domésticas no Espírito Santo estão na informalidade. Por serem consideradas trabalhadoras autônomas, as diaristas não possuem os mesmos direitos das empregadas domésticas com vínculo formal. Shirley Andrade relata que alguns aproveitam desta condição para não pagar os direitos, contratando duas diaristas diferentes, não sendo consideradas trabalhadoras domésticas.
A ex-empregada doméstica Nerezete, de 56 anos, afirma que enfrentou diversas dificuldades ao longo dos anos de trabalho, incluindo jornadas pesadas e tarefas que resultaram em lesões físicas que ainda sente atualmente. Ela explica que a rotina exigia muito esforço além da relação não tão boa com a patroa, o que tornava o dia a dia ainda mais desgastante. Segundo Nerezete, as condições que ela vivenciou foram importantes para sua decisão de não voltar para essa profissão.
A ex-empregada doméstica Miléuza Deoclécio Sfalsin, de 41 anos, relata que enfrentava jornadas longas, com horário definido para chegar, mas sem previsão para sair, além da obrigação de trabalhar aos sábados, ultrapassando as horas que seriam adequadas. Ela afirma que quase não tinha tempo para se alimentar, já que a prioridade era deixar a casa limpa e arrumada para a família.
Miléuza explica que lidava com situações desgastantes como panelas com restos de comida deixadas por dias e roupas sujas de crianças acumuladas para que ela limpasse. Segundo a trabalhadora, o cansaço diário afetava constantemente sua vida familiar e a fazia questionar se conseguia cumprir com todas as demandas exigidas pela sua patroa.
Para denunciar o crime de trabalho análogo à escravidão, o governo tem um canal específico na internet chamado “Sistema Ipê”. O denunciante não precisa de identificação, apenas acessar o site e digitar as informações. Além disso, o Disque 100, que é um serviço do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, funciona 24 horas por dia por todo o país.