“Sei que é mentira, mas me faz feliz”, Cartola
Uma análise poética da música popular brasileira

Alyne Castelan
Cartola, entre outros compositores nacionais, falam da “mentira” em sua arte, explorando as camadas mais profundas da condição humana. Trata-se de uma provocação filosófica, um retrato lírico do modo como a música popular brasileira lida com esse tema tão delicado.
Na música “O Mundo é um Moinho”, ele admite com franqueza comovente: “Sei que é mentira, mas me faz feliz.” A frase soa como um sussurro resignado de quem prefere acreditar numa ilusão a enfrentar o vazio. Não há cinismo, ali há ternura. A mentira, nesse contexto, vira uma forma de prolongar o amor, mesmo que só dentro de si. O poeta não denuncia o engano, ele o aceita como parte do ritual do afeto.
“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”, diz Chico Buarque, um dos grandes arquitetos da mentira como arte na MPB. As canções frequentemente trafegam na fronteira entre o que se diz e o que se esconde. Em “Folhetim”, por exemplo, ele coloca na voz feminina um desejo de liberdade que transgride padrões e se disfarça de doçura. “Pode me chamar de sua, bem à vontade.” Mas é só fachada. A personagem é dona de si, e sabe jogar com as verdades e as mentiras do amor.
Maria Bethânia, uma das vozes mais marcantes, explora nas interpretações a complexidade das relações amorosas. As canções abordam frequentemente a dualidade entre verdades e mentiras no amor, revelando sentimentos profundos e contraditórios. Em músicas como “Verdades e Mentiras”, Bethânia evidencia como ilusões e desilusões moldam experiências afetivas. O repertório reflete a profundidade do amor, com as nuances de paixão, dor e entrega.
Para a MPB, a mentira raramente aparece como vilã pura e simples. Ela é antes um instrumento — às vezes necessário, às vezes cruel — da sobrevivência emocional. Em vez da vilania habitual, a mentira aparece como poesia, se disfarça de consolo, se veste de esperança. Em canções que nos fazem rir ou chorar, ela revela que não há nada mais verdadeiro do que o que sentimos. A mentira consola, ilude por amor, protege da dor ou que nos revela o que a realidade não nos permite dizer
Vale lembrar que, em momentos históricos de censura e repressão, muitos compositores brasileiros usaram a mentira, ou melhor, a ambiguidade, como forma de driblar a vigilância e manter a arte viva. Canções que à primeira vista pareciam românticas traziam entrelinhas políticas afiadas. E temos como exemplo Cálice também de Chico Buarque “Pai, afasta de mim esse cálice”, o disfarce nas letras de um protesto contra a ditadura.
A trilha sonora da mentira
Essas canções não apenas falam de mentiras — elas nos colocam diante da própria complexidade. Porque todos, em algum momento, escolhemos acreditar numa versão mais suave da realidade. Porque, como diz a sabedoria popular: toda mentira guarda um pouco de verdade.
Playlist – A Trilha Sonora da Mentira
- O Mundo é um Moinho – Cartola
- Você mentiu – Tim Maia
- Folhetim – Chico Buarque
- Fado Tropical – Chico Buarque & Ruy Guerra
- Coração Leviano – Paulinho da Viola
- Mentiras – Adriana Calcanhotto
- Olhos nos Olhos – Chico Buarque
- Sampa – Caetano Veloso (com sua sutileza de verdades reinventadas)
- Atrás da Porta – Elis Regina (letra de Chico)**
- Eu Sei Que Vou Te Amar – Tom Jobim & Vinícius de Moraes (mentira ou fé?)
Mentir, afinal, pode ser um ato de defesa, de paixão ou de poesia. E a MPB, com sua alma inquieta, segue cantando essas nuances — porque, às vezes, a mentira é só o jeito que o coração encontrou de continuar batendo.