“Sei que é mentira, mas me faz feliz”, Cartola

Uma análise poética da música popular brasileira

(Foto: Pexels/2025)

Alyne Castelan

Cartola, entre outros compositores nacionais, falam da “mentira” em sua arte, explorando as camadas mais profundas da condição humana. Trata-se de uma provocação filosófica, um retrato lírico do modo como a música popular brasileira lida com esse tema tão delicado.

Na música “O Mundo é um Moinho”, ele admite com franqueza comovente: “Sei que é mentira, mas me faz feliz.” A frase soa como um sussurro resignado de quem prefere acreditar numa ilusão a enfrentar o vazio. Não há cinismo, ali há ternura. A mentira, nesse contexto, vira uma forma de prolongar o amor, mesmo que só dentro de si. O poeta não denuncia o engano, ele o aceita como parte do ritual do afeto. 

“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”, diz Chico Buarque, um dos grandes arquitetos da mentira como arte na MPB. As canções frequentemente trafegam na fronteira entre o que se diz e o que se esconde. Em “Folhetim”, por exemplo, ele coloca na voz feminina um desejo de liberdade que transgride padrões e se disfarça de doçura. “Pode me chamar de sua, bem à vontade.” Mas é só fachada. A personagem é dona de si, e sabe jogar com as verdades e as mentiras do amor.

Maria Bethânia, uma das vozes mais marcantes, explora nas interpretações a complexidade das relações amorosas. As canções abordam frequentemente a dualidade entre verdades e mentiras no amor, revelando sentimentos profundos e contraditórios. Em músicas como “Verdades e Mentiras”, Bethânia evidencia como ilusões e desilusões moldam experiências afetivas. O repertório reflete a profundidade do amor, com as nuances de paixão, dor e entrega.

Para a MPB, a mentira raramente aparece como vilã pura e simples. Ela é antes um instrumento — às vezes necessário, às vezes cruel — da sobrevivência emocional. Em vez da vilania habitual, a mentira aparece como poesia, se disfarça de consolo, se veste de esperança. Em canções que nos fazem rir ou chorar, ela revela que não há nada mais verdadeiro do que o que sentimos. A mentira consola, ilude por amor, protege da dor ou que nos revela o que a realidade não nos permite dizer

Vale lembrar que, em momentos históricos de censura e repressão, muitos compositores brasileiros usaram a mentira, ou melhor, a ambiguidade, como forma de driblar a vigilância e manter a arte viva. Canções que à primeira vista pareciam românticas traziam entrelinhas políticas afiadas. E temos como exemplo Cálice também de Chico Buarque “Pai, afasta de mim esse cálice”, o disfarce nas letras de um protesto contra a ditadura.

A trilha sonora da mentira

Essas canções não apenas falam de mentiras — elas nos colocam diante da própria complexidade. Porque todos, em algum momento, escolhemos acreditar numa versão mais suave da realidade. Porque, como diz a sabedoria popular: toda mentira guarda um pouco de verdade.

Playlist – A Trilha Sonora da Mentira

  • O Mundo é um Moinho – Cartola
  • Você mentiu – Tim Maia
  • Folhetim – Chico Buarque  
  • Fado Tropical – Chico Buarque & Ruy Guerra
  • Coração Leviano – Paulinho da Viola 
  • Mentiras – Adriana Calcanhotto 
  • Olhos nos Olhos – Chico Buarque
  • Sampa – Caetano Veloso (com sua sutileza de verdades reinventadas)  
  • Atrás da Porta – Elis Regina (letra de Chico)**  
  • Eu Sei Que Vou Te Amar – Tom Jobim & Vinícius de Moraes (mentira ou fé?)

Mentir, afinal, pode ser um ato de defesa, de paixão ou de poesia. E a MPB, com sua alma inquieta, segue cantando essas nuances — porque, às vezes, a mentira é só o jeito que o coração encontrou de continuar batendo.