Uma Vida de Fé, Caridade e Compromisso com a Comunidade

Kelder José Brandão Figueira é padre da Arquidiocese de Vitória há 23 anos e conhecido pela luta diária para transformar o mundo em lugar mais humano, justo e igualitário. Conheça um pouco sobre a história de vida e o despertar para a vocação presbiteral

Ana Clara Gonçalves

Em uma sala de cortinas brancas e abundante luz solar, me sento em frente a uma mesa de escritório, enfeitada por um calendário na página que marca a palavra amizade, escrita grande com uma foto de pessoas sorridentes e uma plaquinha com “gratidão” numa fonte divertida e colorida. Ao meu lado, tem mais duas cadeiras vazias e um sofá, eu imagino as palavras que já possam ter sido ditas ali. A sala é grande o suficiente para caber uma família inteira e ouvir todas as confissões e segredos mais íntimos.

Com um sorriso fácil, o Padre entra na sala, se despede da secretária que organizava o espaço com zelo, fecha a porta e me cumprimenta com um aperto de mão. Eu me apresento, ele senta à minha frente numa cadeira de rodinha nos pés que parece confortável e damos início a uma conversa.

Reverendo Kelder José Brandão Figueira (Foto: Arquidiocese de Vitória)

Reverendo Kelder José Brandão Figueira, natural de Buenos Aires, um povoado de italianos com negros e índios, situado nas montanhas de Guarapari, 56 anos de idade e Padre na Arquidiocese de Vitória há 23. Além de filósofo e teólogo, cursos obrigatórios no seminário, também é graduado em ciências contábeis e direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que foram essenciais para o despertar social de um homem que teve uma infância simples no interior sem muito contato com a igreja e, mesmo assim, seguiu o chamado vocacional para a vida em comunhão.

Padre Kelder me explica que apesar da função atual, não teve grandes estímulos para seguir a vocação quando criança, pois morava em comunidade rural e, embora tivesse uma relação íntima com a fé, a conexão com a instituição religiosa era distante. Os padres visitavam a comunidade apenas uma ou duas vezes ao ano, geralmente durante as festas dos padroeiros. Assim, a própria comunidade era responsável por manter a fé viva.

O Padre diz que quando tinha entre dez e onze anos, numa dessas festas com a ilustre presença de um presbítero, foi profundamente impactado por um hino. E cantarolando ele me fala sobre um Jesus Cristo que passa fome e grita pela boca dos famintos, que não tem um lugar para dormir e dorme embriagado, que não tem estudo e mendiga por um subemprego, que está atrás de grades e que anda sedento por um mundo com amor e justiça.

Com uma expressão de indignação e as sobrancelhas franzidas, Padre Kelder me questiona da mesma forma que fez a si mesmo quando criança: como podemos nos conformar com essas situações? Como aceitar uma pessoa passando fome e dormindo na rua? Aquele menino que nem mesmo tinha uma vida cristã tradicional com os sacramentos devidos não entendia o que era aquilo e nem imaginava, mas ali estava tendo o primeiro despertar para a vocação presbiteral.

Na faculdade, o rapaz começou a viver a vida, se ocupava com trabalho, as duas graduações simultâneas e ações do movimento estudantil e do conselho de ensino e pesquisa. E apesar do reconhecimento na academia e no mundo profissional, Padre Kelder não se sentia pleno e o hino de Jesus Cristo passando fome ainda ressoava na cabeça.

Havia um desejo sufocado e perto da conclusão do curso de Ciências Contábeis decidiu explorar para compreender se era realmente aquilo e fez um acordo com Deus: “Ficarei mais um ano aqui fora. Vamos ver o que acontece.” No entanto, a voz interior que sentiu se tornou mais forte e inegável, seguiu a vocação presbiteral e, desde então, tem vivido integralmente nessa missão, a serviço da instituição e do reino.

Agora, havia encontrado na vida como padre o propósito. Relembrando dessa época, o Padre me conta como organizavam seminários na universidade e formavam grupos de estudo para debater sobre a democracia, participação e uma justiça mais proativa, com um olhar mais inclusivo para os menos favorecidos. E embora tenha tido ideias fortes, o envolvimento não se intensificou tanto em termos de militância, mas de ideias e intenções.

A inserção na vida em comunidade aconteceu quando foi estagiar na pastoral de Feu Rosa, no município de Serra. Na época, estavam iniciando as ocupações escolares e ali ele entendeu o que eram as comunidades eclesiais de base, a enculturação e a importância dos movimentos sociais. Após alguns desafios e já um pouco calejado de experiência, começou a construir e caminhar de maneira diferente junto com cada paróquia em que era designado.

Padre Kelder Brandão em celebração Eucarística na Festa da Penha (Foto: Arquivo/Convento da Penha)

Depois, mudou-se para São Pedro, em Vitória, onde teve a primeira experiência significativa com a periferia em 2008. Uma nova paróquia, uma nova realidade longe do que estava acostumado na prática e um grande potencial. Os moradores dali já haviam transformado um lixão em uma importante área comercial para a cidade, mas, ainda assim, teve que lidar diretamente com violências brutais diárias. Por isso, a abordagem pastoral dele mudou com base nessas experiências.

Com uma abordagem branda e respeitosa aos moradores, buscou ali estar mais próximo da comunidade e permitir que o povo construísse o próprio caminho, abdicando do seu próprio. Nos últimos anos,  influenciado por movimentos sociais, o presbítero adotou uma postura mais enfática e explícita em relação à política, o que gerou descontentamento por parte de alguns participantes da igreja.

No entanto, o Padre Kelder defende que, na condição de membro da instituição religiosa, tem a responsabilidade de agir de acordo com os ensinamentos do evangelho, que devemos acreditar na humanidade e na capacidade das pessoas de reconstruir os próprios caminhos, além de que todos são destinatárias do bem e ninguém tem o direito de julgar as motivações dos outros.

No mesmo pensamento, o sacerdote defende ainda que apenas a instituição religiosa tem a responsabilidade de combater essa lógica de preconceito e da ambição que está levando o mundo à exaustão. Para o padre é preciso garantir dignidade a todas as pessoas, enfatizando a integridade da vida humana e a preservação do meio ambiente em todas as fases de suas vidas, sem seletividade.

Por fim, Padre Kelder se define como um simples padre celibatário que reside na perifería e que está em constante processo de aprendizado e evolução com as comunidades. Processo esse que se torna mais claro com o passar dos anos e experiências vividas. Assim, continua acreditando na redenção humana, considerando a vida de todos, vive no presente e confia na providência divina. Para ele, fazer a vontade de Deus, em vez da nossa, é o caminho a seguir.


>>> Esse conteúdo faz parte da série “Vidas que Contam”. Os textos apresentados descrevem o Perfil de Pessoas Anônimas e foram elaborados por estudantes do curso de Jornalismo da FAESA Centro Universitário. As produções tiveram a orientação do professor Fabiano Mazzini na disciplina de Jornalismo Literário e Livro-reportagem.

Edição: Camila Buzzette

Imagem do Destaque: Núcleo de Publicidade do Lacos/Alyson Ferreira