A normalização das doenças mentais
Loren Peterli
No século XIX, as pessoas com diagnóstico de doenças psicológicas eram tratadas como animais, viviam em condições desumanas, dormindo sobre capim sujo de fezes e urina. Nos casos em que as medidas farmacológicas não eram suficientes, a terapia de choque e a lobotomia eram feitas nos pacientes sem qualquer aprovação das famílias ou dos responsáveis legais.
Mas o que é a lobotomia?
É uma técnica de intervenção psicocirúrgica feita no cérebro, que consiste na retirada total ou parcial dos lóbulos cerebrais, visando modificar comportamentos ou curar doenças mentais.
Essas instalações, na verdade, eram prisões, mas com o nome de clínicas, hospitais ou consultórios médicos. Não havia um conceito para cuidar ativamente de indivíduos com dificuldades mentais e a solução era isolá-los das famílias e da sociedade. A ideia era minimizar, dentro da mentalidade da época, o que poderia ser percebido como risco de dano à comunidade.
Acreditava-se que a perturbação mental ainda era uma escolha. Por isso os funcionários usavam restrições físicas, camisas de força e até mesmo ameaças para tentar “curar” os indivíduos. Às vezes, drogas eram dadas aos pacientes considerados mais “perigosos” e “difíceis”. Esses indivíduos eram tratados como anormais e foram excluídos por toda a sociedade.
Atualmente, depois de dois séculos desses eventos, um dos efeitos mais nocivos que se apresenta após essa opressão é a normalização do patológico. Por exemplo, as pessoas, hoje, já começaram a se acostumar com o fato do transtorno de ansiedade se tornar corriqueiro. Já estão normalizando a situação e minimizando o problema. Não importa se está todo mundo doente, mais ansioso ou sofrendo com algum transtorno. Não faz diferença quem sofre mais ou menos, pois a doença está sendo vista como algo normal e isso é muito perigoso.
Hoje, há uma multidão de pessoas que desenvolveram quadros de ansiedade e depressão. Além daquelas que já tiveram esse problema antes da pandemia e, mesmo com a situação controlada, voltaram a ter crises mais frequentes e intensas. Há estimativa de aumento de 25% dos casos em todo o mundo, fato direto que expõe o adoecimento populacional. E isso tem agravado, principalmente, na saúde mental de crianças e adolescentes.
A professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP Valéria Barbieri alerta que tratar como comum e trivial as experiências vividas por quem sofre com doenças mentais é uma forma de banalização desses transtornos. Um outro exemplo, utilizado pela professora, é quando uma pessoa transitoriamente triste faz um autodiagnostico e diz que “está com depressão”. Essas situações contribuem para a desinformação e o preconceito dos transtornos mentais.
A banalização dos transtornos mentais é uma forma de apropriação pela população do conhecimento produzido a respeito deles. Ao mesmo tempo que o acesso à informação sobre o tema é positivo, corre-se o risco de esvaziar o significado do diagnóstico dos transtornos
Valéria Barbieri
Valéria Barbieri afirma que outro fator relevante para analisar a banalização dos transtornos mentais pela sociedade é a exigência de que a pessoa esteja sempre em sua “melhor forma”. Esse fato, segundo Valéria, transforma oscilações emocionais naturais, como a angústia e a ansiedade, em problemas que precisam ser erradicados. Muito ao contrário, esclarece, esses sentimentos só constituem transtornos mentais quando se tornam incapacitantes para a pessoa durante um longo período de tempo.
A professora e Coordenadora do curso de Psicologia da FAESA Centro Universitário, Caroline de Paula Corrêa Bezerra, exemplifica como a vivência cotidiana é um verdadeiro dilema quando se trata de situações repentinas que transitam de ajuda a insultos e brincadeiras, frutos da ignorância.
A especialista em saúde mental explica que a convivência social é desafiadora em todos os ângulos, pois o outro costuma ser diferente em pensamentos, em ações e em afetos dos demais indivíduos, mas é possível encontrar um ponto de equilíbrio nessas circunstâncias. O primeiro caminho para construção de relações respeitosas é ver a convivência social como uma oportunidade de crescimento pessoal e estando aberto a compreensão de que todos são diferentes.
A partir da temática do setembro amarelo não há brincadeira que pode ser feita em se tratando do sofrimento do outro. Um sofrimento tão profundo que pode levar a pessoa a pensar no suicídio como única forma de lidar com essa dor
Caroline Bezerra
É importante ressaltar, segundo a professora Caroline de Paula, que a partir do momento que a brincadeira é sobre as características, modo de pensar e cultura do outro, deixa de ser piada e pode ser sentido como falta de respeito. Então, se não cabe a ninguém julgar os sentimentos do outro e não há justificativas para chacotas como essas.
Normalização equivocada
Para entender a banalização, ao contrário da pessoa saudável que se diz erroneamente deprimida por um sofrimento circunstancial que vai desaparecer com o tempo, Caroline de Paula cita outra pessoa diagnosticada com transtorno depressivo e com sintomas mais graves e duradouros. Nesse caso, a pessoa saudável é incapaz de compreender a intensidade e permanência do sofrimento do outro, pois a depressão que ela diz ter experimentado não foi da mesma maneira e intensidade. A consequência da banalização dos transtornos mentais, nesses casos, é o afastamento. “A pessoa com transtorno perde cada vez mais esperança de ser compreendida e fica isolada”, relata a professora.
Caroline de Paula diz que a principal forma de banalização das doenças psicológicas é a atribuição de diagnóstico a si mesmo e, também, aos outros. Muito comum na internet, os indivíduos tiram conclusões a partir de postagens de outras pessoas. O problema é que, na maioria das vezes, o indivíduo em sofrimento não consegue acessar informações sobre si mesmo. Segundo Valéria, essas são informações inconscientes que somente são obtidas por meio de entrevistas profundas e testes psicológicos sofisticados, realizados por profissionais com formação especial e com experiência. “Se considerar apenas uma característica ou um sintoma, não quer dizer praticamente nada em termos da pessoa ter uma determinada doença ou um transtorno”, afirma a psicóloga.
Enquanto o menosprezo social atua sobre as doenças mentais, o sofrimento cresce. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a principal causa de incapacidade no mundo é a depressão, com uma estimativa de mais de 300 milhões de doentes. Além disso, cerca de 60 milhões de pessoas no mundo sofrem com transtorno afetivo bipolar. Já a esquizofrenia afeta em torno de 23 milhões de pessoas em todo o planeta.
O maior problema é que a pandemia trouxe um olhar diferente para a população. Em uma situação de medo e desespero de que as coisas nunca mais se normalizassem, houve uma mobilização para que todos se acostumassem com o “novo normal”. Por mais que essa inclusão tenha ajudado no momento, o transtorno de ansiedade, por exemplo, tem sido considerado como algo habitual, não doentio. As pessoas estão se acostumando a sentir os sintomas, normalizar a doença e não oferecer a devida importância ao problema.
Fim do setembro amarelo, não da causa
O setembro acabou, mas não a causa que leva a sociedade a pintar o mês de amarelo para chamar a atenção para um problema de saúde pública que parece não ter fim e continua presente no cotidiano da sociedade. O suicídio deve estar na pauta de todos os meses do ano e não apenas no “setembro Amarelo”.
Segundo a professora Valéria Barbieri, existe ainda outra face da estigmatização dos transtornos mentais, que é a glamourização e a romantização. É nas produções cinematográficas, séries de televisão e mídias sociais que essa face toma forma. “O personagem que sofre de um transtorno mental é curado por outro que se apaixona por ele”. Para a professora, esse tipo de imagem transmitida contribui para a desinformação de doenças reais que devem ser tratadas com psicoterapia e, em alguns casos, com auxílio de medicação. A incorporação e consequente popularização das discussões sobre saúde mental, então, são fundamentais para quebrar preconceitos e mostrar ofertas de ajuda para quem precisa.
O problema, assim, é normatizado como um assunto irrelevante no resto do ano, exceção pelo mês de setembro. Isso demonstra a preocupante falta de empatia e compaixão com o próximo por essa temática e de tantas outras. Caroline Barbieri lembra que o suicídio é um comportamento multifatorial, ou seja, fazer uma prevenção eficaz envolve pensar em múltiplos aspectos e intervenções que deveriam envolver ações diárias nas famílias, nas escolas, nas empresas e na construção de políticas públicas.
Caroline Barbieri afirma que as pessoas devem repensar o atual modelo de sociedade, pois é necessário que a prevenção seja em conjunto e todos os meses devem ser ‘amarelos’.
Uma pessoa comete suicídio a cada quatro segundos no mundo, é o que diz um novo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso corresponde a 800.000 mortes por ano. Os dados são referentes a 2016 e o número é superior aos óbitos por malária, câncer de mama, guerra ou homicídio e significa “um sério problema de saúde pública global”. O suicídio é a segunda causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no mundo, atrás apenas de acidentes de trânsito. Há evidência que sugere que para cada pessoa que morre por suicídio, há estimativa de que outras 20 pessoas tentam cometê-lo.
Edição: Loren Peterli
Imagem destaque: Loren Peterli