Boca de Lixo, de Eduardo Coutinho, é essencial

Diogo Cavalcanti

Lixo para alguns, subsistência para outros. Quando caminhões despejam os resíduos da cidade no vazadouro de Itaoca, no Rio de Janeiro, centenas se aglomeram como formigas em busca de açúcar. Contudo, em vez de insetos, humanos. Famílias fazem do lixão a principal forma de sustento. Tudo é recolocado no ciclo de consumo: do alumínio das latas para venda, às roupas para se cobrirem. Homens e mulheres, jovens e idosos, humanos e urubus. Todos se misturam. Com enxadas, escavam o lixo vorazmente, como mineradores de pedreiras férteis em busca de ouro. A corrida, entretanto, não é pela pedra preciosa, mas pelo pão de cada dia. Esse é o cenário tratado em Boca de Lixo, documentário de Eduardo Coutinho: um dos maiores documentaristas do mundo e, para diversos especialistas, o maior do País.

Lançada em 1992, a produção retrata parte da vida de catadores que sobrevivem do lixo. À margem da sociedade, constroem laços em um ambiente que é esquecido até pelos produtores de conteúdo. Esse é um dos principais traços de Coutinho, documentarista que faleceu em 2014, aos 80 anos, deixando um legado de produções cujas mensagens ainda ecoam. Segundo William de Oliveira, mestre em comunicação e professor de jornalismo, Coutinho dava vozes, produzia o documentário participativo, já que se envolvia com a equipe na produção, não se importando em integrar diretamente a cena, em fazer parte dela. Ele possuía uma visão muito particular do documentário. Integrava-se ao filme, imergia-se nele, sem fingir que era um ser distante como muitos fazem.

Coutinho misturava, como ninguém, o gênero de observação com o de participação. Sabia muito bem o que estava fazendo. Não era um cara linear: cada documentário era um documentário diferente. Ele era o seu próprio estilo. O que para muitos seriam cenas cortadas, para ele fazia parte do enredo

William de Oliveira, Mestre em Comunicação Social

Coutinho chegou ao lixão de Itaoca com uma pequena equipe, que incluía na câmera de vídeo Breno Silveira, diretor, anos após, de produções como Dois Filhos de Francisco (2005) e Entre Irmãs (2017). No início, o clima era de repulsa. Mãos nos rostos, gestos proibitivos, recusas. Os integrantes do lixão não entendiam o porquê da câmera, dos microfones e o que aquele senhor de cabelos brancos vestindo roupas tão limpas fazia em meio a tantas pilhas de lixo. Aos poucos, a aceitação desejada pela produção era alcançada. O gelo foi quebrado quando os catadores puderam ver suas faces em pequenas fotos em preto e branco – o negativo da câmera de vídeo.

Com as mãos sujas,de lixo, a catadora folheia fotos e nelas reconhece colegas (Foto: reprodução)

Cinco pessoas concederam entrevistas com maior destaque. Os diálogos, por vezes, começavam no lixão e terminavam na casa dos entrevistados. Com isso, foi possível conhecer o viés humano dos participantes. Não somente personagens aleatórias, porém pessoas que compartilhavam sentimentos, necessidades, sonhos, descontentamentos. Advindos de locais desinteressantes para a maior parte da sociedade, demonstraram impressões sobre a vida, bem como o que os fizeram chegar até lá.

Alguns, inclusive, afirmaram preferir ser catadores do que trabalhar em casa de família. Lúcia é uma dessas pessoas. A catadora e ex cortadora de cana deixa as filhas com uma amiga para poder trabalhar. Segundo ela, a lixeira é necessária para seu sustento. “Achamos roupas boas, calçados bons. O que não serve para o rico, serve para o pobre. Para nós é bem útil”, declara a catadora. Outro destaque foi dado a Enock, um simpático e ativo idoso. Ele destaca a vasta experiência que adquiriu em outros estados, ora no Amapá, ora no Rio Grande do Sul. Atuou, aliás, na construção de cidades como operário. Somente nesse vazadouro, trabalha há 4 anos. Apesar da aparência desgastada, não consegue ficar muito tempo longe da atividade.

A semelhança entre as citadas e tantas outras histórias abordadas na obra não se limita ao ambiente do vazadouro. Coutinho, que em sua filmografia possui um dos filmes mais importantes do cinema documental brasileiro, Cabra marcado para morrer (1984), arrancou os relatos dos entrevistados valendo-se das fotos em preto e branco para aproximação, mas – também – do acaso. Segundo ele, em entrevista concedida ao jornalista Lauro Mesquita, em 2009, seu interesse pelos trabalhos se dá em decorrência do acaso e improviso.

Se eu não me surpreendo em um filme, ele não me interessa em nada. Acho que isso também serve pro público. Se o filme não faz pensar, não toca na imaginação, não vale a pena

Eduardo Coutinho

O documentário expõe que, embora haja alimentos em decomposição, seringas a céu aberto, há um clima de cooperação entre os catadores: uma comunidade. Ao revés do que o Estado concede, conseguem sorrir, demonstrar garra, tirar o sustento, enfim, pensar no futuro – mesmo que com preocupação. Uma vida em cujas condições seria, para muitos, praticamente, impossível viver. Todavia é o que lhes resta. Esquecidos pelas promessas, pela legislação. Nascidos na pobreza, têm a certeza de que nela permanecerão, contudo, dignamente. Aliás, consumir sobras não constitui crime.

Apesar do aparente desgaste, Enock esbanja vivacidade e mantém-se ativo como catador (Foto:reprodução)

A aposentada Gladys Rejane Cavalcanti, 60 anos, embora já ouvira falar a respeito do Boca de Lixo, o assistiu pela primeira vez há poucos dias. De acordo com ela, a vida difícil que as personagens levavam, contrastada com um certo grau de conformismo mostrado na tela foi o que mais a chocou.

Cicera (uma das personagens) me chamou mais a atenção. Ela me fez refletir bastante, pois – mesmo após finalizar o dia com dores nas costas após trabalhar bastante – retorna a sua casa com alegria, sendo recebida pelo cãozinho e familiares. Sente-se feliz mesmo diante de tal realidade

Gladys Rejane Cavalcanti, aposentada

Ao final, como de costume em suas obras, Coutinho apresenta, em um televisor, posicionado em cima de uma kombi, o resultado: o documentário pronto para as testemunhas do descaso, para os grandes atores da trama que, maravilhados, apreciam as imagens. Afinal, o que há em um lixão além de lixo? Bastante aprendizado. Embora lançada há 28 anos, a produção mostra-se, ainda, atual. São cerca de 45 minutos necessários na vida de qualquer cidadão que se importe em adquirir cultura e colocar-se, sob o olhar de Coutinho, no lugar do outro. Essencial!

Foto do destaque: reprodução

Edição: Diogo Cavalcanti